Flávia Guerra escreve artigo no El País sobre a mudança de mentalidade necessária para transformar a ação climática urbana

Pessoas em um jardim comunitário
©️ Daniel Kozak

As villas argentinas e as favelas brasileiras, que abrigam mais de 1,1 bilhão de pessoas em assentamentos informais, demoraram a aderir ao discurso global sobre sustentabilidade e mudanças climáticas. Para essas comunidades, a ação climática é definida pela sobrevivência, não pelo luxo: uma árvore fornece sombra contra o calor extremo. Um sistema de saneamento significa resiliência, não apenas uma comodidade.

O artigo "Mentalidades que transformam territórios urbanos vulneráveis", publicado em setembro de 2025, destaca uma mudança profunda: o ambientalismo está passando de uma sugestão técnica para um direito reivindicado por residentes. Essa mudança de mentalidade, impulsionada pelo sentido de apropriação por parte das comunidades e espaços como os Laboratórios Urbanos do projeto Alianças para Transformação Urbana (TUC), é a alavanca invisível que impulsiona transformações urbanas reais.

De acordo com a pesquisadora da UNU-EHS, Flávia Guerra, a verdadeira transformação urbana só é possível quando se entende que a ação climática é indissociável da justiça social e do direito à cidade.

Leia o artigo completo em espanhol aqui. Leia a tradução em português abaixo.

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Mentalidades que transformam áreas urbanas vulneráveis

Para as mais de 1,1 bilhão de pessoas que vivem em assentamentos informais, em favelas argentinas e brasileiras, o discurso sobre mudanças climáticas e sustentabilidade demorou a chegar, e ainda hoje enfrenta uma questão central: é ambientalismo ou sobrevivência?

Setembro de 2025 | Flávia Guerra

"Eu entendo as mudanças climáticas em termos de saneamento e água potável, não em termos de árvores." Esta declaração de um morador da Villa 20, um assentamento informal em processo de reurbanização em Buenos Aires, resume um dilema central da ação climática em assentamentos urbanos informais e de baixa renda, como as villas na Argentina e as favelas no Brasil: como podemos falar de sustentabilidade em contextos onde ainda falta o básico?

Por muito tempo, falar sobre sustentabilidade urbana foi uma conversa distante para quem vivia às margens da cidade. As discussões sobre mudanças climáticas, infraestrutura verde e reciclagem pareciam reservadas a especialistas, acadêmicos ou residentes de subúrbios ricos do Norte global, com ar-condicionado e tempo disponível. Nas ruas dos bairros populares, por outro lado, a agenda girava em torno de emergências imediatas: falta de moradia, falta de saneamento básico, falta de água, falta de tudo.

No entanto, cada vez mais comunidades em assentamentos informais e periferias urbanas estão começando a conectar o meio ambiente com suas lutas diárias. O que está surgindo nestas áreas é uma transformação profunda: uma mudança de mentalidade.

Do luxo à sobrevivência

O que antes era visto como um luxo agora começa a ser percebido como parte da sobrevivência em contextos de calor extremo e precariedade urbana. As árvores não são mais apenas ornamentais, mas fornecem sombra, frescor e espaços de convivência. E o lixo acumulado na esquina não é mais apenas um problema de higiene, mas parte de uma cadeia de impactos que agrava inundações e doenças.

Este processo não acontece por decreto ou por meio de planos técnicos desenvolvidos em secretarias municipais. Ele nasce em espaços de troca e aprendizagem coletiva, como os laboratórios urbanos organizados no âmbito do  projeto Alianças para Transformação Urbana, onde comunidades e cientistas dialogam e implementam soluções. O sentido de apropriação é a chave: quando o meio ambiente deixa de ser "uma sugestão de especialistas" e se torna "um direito negado", o papel do Estado também muda. Não é mais a autoridade que impõe o verde, são os moradores que o exigem.

Mindset shifts: a alavanca invisível

Há uma pesquisa da Universidade das Nações Unidas que fala sobre mindset shifts: mudanças de percepção que sustentam profundas transformações urbanas. Em bairros de Buenos Aires, León (México) e Teresina (Brasil), vimos como os moradores deixaram de resistir a iniciativas de ação climática, como espaços verdes, e passaram a promovê-las como uma estratégia de resiliência, coesão social e saúde. "Percebemos tarde demais que havíamos rejeitado espaços verdes. Hoje dizemos: como fomos idiotas!', admite uma moradora de Buenos Aires.

Os moradores contam como sua relação com o meio ambiente mudou quando entenderam que "criar uma passagem verde" não era apenas uma ação estética ou uma excentricidade cara, mas uma forma de resistir ao avanço do concreto, baixar a temperatura do bairro e melhorar seu dia a dia. Quando isso é compreendido, não é apenas ouvido, mas também vivido, e o verdadeiro processo de apropriação emerge.

Mudar as percepções sobre o meio ambiente, do luxo para a necessidade, de algo estranho para algo familiar, anda de mãos dadas com o design colaborativo e a implementação de soluções baseadas na natureza, como árvores, hortas e passagens permeáveis. A ação climática faz sentido quando se conecta com as preocupações cotidianas e é incorporada à voz e ao trabalho dos líderes locais e das parcerias público-comunitárias. A experiência mostra que construir confiança entre vizinhos e outros atores e vincular as mudanças ecológicas às realidades cotidianas do bairro faz mais do que mudar hábitos: é um processo que tece novas formas de liderança e atuação e, com elas, uma cidade que se transforma de dentro para fora.

Pessoas, perfis e mudanças

De acordo com estes estudos, existem "personagens urbanos" comuns que representam as diferentes maneiras pelas quais as pessoas percebem e agem em resposta à crise climática. Estes personagens incluem o ativista cético, que age a partir de seu envolvimento com a comunidade, com profundo compromisso social; o tecnocrata otimista, que confia na inovação, na tecnologia e na ação do Estado; e o espectador ambivalente, que reconhece a crise climática, mas a percebe como um problema distante ou estranho ao seu contexto.

Esses perfis não são categorias rígidas, mas são transformados por meio de experiências coletivas e processos de aprendizagem, como alianças para transformação urbana. E como o reconhecimento e a identificação desses perfis nos ajudam? Por exemplo, envolver ativistas céticos em espaços reais de participação com autoridades ajuda a ampliar sua visão; apoiar tecnocratas com projetos tangíveis em campo facilita seu reconhecimento das dimensões sociais; e despertar os espectadores com treinamento prático e espaços de empoderamento pode transformar a indiferença em ação.

O que é comum em todos os casos é que essas mudanças de mentalidade não acontecem automaticamente, e não permanecem sem condições mínimas. Leva tempo para ocorrer o aprendizado reflexivo, a escuta ativa e respeitosa entre especialistas e comunidades e o compromisso político genuíno para sustentar a continuidade desses processos.

Justiça climática partindo de baixo

Depoimentos de residentes e evidências acadêmicas concordam: pensar em sustentabilidade sem abordar as necessidades urgentes desses territórios ou incluir suas vozes é um erro. A verdadeira transformação urbana só é possível quando entendemos que a ação climática é indissociável da justiça social e do direito à cidade para todos. Não haverá cidade resiliente se árvores e saneamento continuarem sendo vistos como esforços opostos.

Mas essas transformações mentais já estão acontecendo. Partindo de baixo, da passagem intervencionada, da horta plantada por moradores, do vizinho que começa a entender que a árvore não é uma decoração, mas parte de uma necessidade. A cidade do futuro está começando a ser construída no dia a dia. Lá, onde o urgente e o possível se encontram. O que começa como uma horta comunitária ou uma passagem verde pode contribuir para a reformulação de políticas de habitação e planejamento urbano em escala municipal. O que é necessário agora é ouvir as pessoas envolvidas nesses processos, aprender com essas experiências e tecer alianças urbanas que multipliquem essas mudanças de mentalidade.

Flávia Guerra é pesquisadora sênior do Instituto de Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas (UNU-EHS).